A Clínica é um Ringue de Luta, ou um Grande Teatro? Um ensaio sobre Estilo Terapêutico
- Victor Portavales Silva
- 27 de nov. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 26 de dez. de 2022

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Todo(a) psicoterapeuta tem uma missão principal em sua jornada: desenvolver um estilo pessoal. Cada um tem o seu, e não cabe comparar ou defender um modelo único. A diversidade de estilos é justamente o que torna a Psicologia e a psicoterapia tão interessantes! Em uma perspectiva fenomenológico-existencial, essa busca por um estilo pessoal é ainda mais necessária. Isso ocorre porque na ausência de uma teoria de base que guie a atuação clínica é preciso buscar a observância de atendimento a alguns critérios éticos (ethos) ou fundamentos filosóficos de modo criativo e autônomo. O grande mote da Psicologia fenomenológico-existencial é o retorno às coisas mesmas, e uma atuação compreensiva frente à existência.
Como essa perspectiva não se guia por diagnósticos ou roteiros, o(a) psicoterapeuta deve desenvolver seu próprio modo de ir às coisas mesmas e de compreender a existência. Compreender não é sinônimo de explicar, o que coloca o impeditivo de que nenhuma teorização deve ser construída no momento de atuação. Mas então o que guia o atendimento? Se não há diagnósticos ou roteiros, como planejar os atendimentos?
Embora não se guie por diagnósticos, a Psicologia fenomenológico-existencial busca aplacar o sofrimento, de modo que o norteador principal é a demanda. E o que seria uma demanda? Todo mundo tem uma queixa inicial, um motivo que levou a pessoa a buscar a psicoterapia e que gera algum grau de sofrimento. Afinal, ninguém busca terapia a esmo. Buscamos para aplacar alguma vivência em específico.
Essa demanda não é fixa, e pode mudar ao longo do tratamento. Mas sempre há um ponto de partida, e no momento inicial da terapia o que se busca é entender de maneira mais ampla as situações, comportamentos e sentidos em torno dessa demanda. E enquanto ganhamos entendimento sobre tudo isso, o(a) próprio(a) paciente adquire conhecimento sobre si, de modo a poder se apropriar e se fortalecer em seus próprios critérios e decisões.
Contudo, o modo como isso vai se desenrolar depende muito do estilo terapêutico de quem conduz o processo. E falando sobre estilo, Ana Feijoo, uma grande referência da Psicologia fenomenológico-existencial no Brasil, costuma dizer que não devemos limar nossos ângulos. Precisamos nos dilapidar, e não aparar as pontas. Limar os ângulos significa transformar um diamante bruto em uma mera bola de gude. Para que um diamante ganhe beleza seus ângulos precisam sobressair, e eles são definidos pela pedra bruta que deu origem à jóia.
Nesse aspecto, oferecer terapia e trabalhar como psicoterapeuta requer que nos dilapidemos. Mas não de modo a nos tornarmos apenas mais um(a) igual ao resto (bola de gude). Pelo contrário, devemos ganhar conhecimento sobre nossas próprias características (qualidades e defeitos), e desenvolvê-las de modo a beneficiar o(a) paciente.
O que posso dizer é que meu próprio estilo terapêutico tem muito a ver com duas figuras inclassificáveis: Kierkegaard e Bruce Lee. A princípio parece um disparate agrupar duas pessoas tão distintas ao falar sobre isso. Mas irei me explicar...
Bruce Lee, nome artístico de Lee Jun-Fan, foi um grande ator e artista marcial chinês. No campo das artes marciais, Bruce Lee foi o fundador do chamado Jeet Kune Do. O Jeet Kune Do ("O modo de interceptar o punho") é um estilo de luta que mistura elementos de Kung Fu, Karate, Judo, e outras artes marciais, tentando verificar o que funciona para cada pessoa, adotando as melhores práticas e abandonando as que não funcionam. Bruce Lee costumava descrever o Jeet Kune Do como um "desespero organizado", e dizia:
“Se sua vida está ameaçada, você não para e pensa: Deixe-me ver se minha mão está na posição correta, ao lado do meu quadril, ou se meu estilo é O ESTILO. Então, por que a dualidade?”
Mas, ao propor esse novo estilo de luta, desagradou profundamente grandes mestres do Kung Fu chinês. Conta-se que o ódio era tanto que Bruce Lee mal podia andar na rua sem ser convocado para um duelo. Esses grandes mestres criticavam Bruce Lee acusando-o de ter abandonado os fundamentos filosóficos que guiavam o ensinamento das artes marciais, como se Bruce tivesse aplicado um certo utilitarismo ao Kung Fu.
Eles não podiam estar mais enganados... Pois o fundamento filosófico do Jeet Kune Do é sua maior força. Esse fundamento é, precisamente, o anti-dogmatismo, que é a base do inconformismo frente ao "sempre foi assim" ou "sempre se fez desse jeito". A abordagem filosófica do Jeet Kune Do é o mais importante do sistema, já que ele não se limita a conjuntos de movimentos. Para Lee, o Jeet Kune Do se desenvolve diferentemente em cada tipo de lutador, porque as pessoas são igualmente diferentes, e não possuem as mesmas características físicas e psicológicas. A “liberdade de expressão” era para ele fundamental dentro de uma luta, e acreditava que um sistema marcial restrito, ou um conjunto de movimentos limitava a habilidade de resposta do lutador, que deve ser completa. O lutador eficaz deveria ser capaz de responder a qualquer tipo de situação.
Sobre isso, Bruce Lee disse em uma entrevista: "Seja como a água, meu amigo!"
Bruce Lee utiliza a água como uma analogia para a adaptabilidade. Para ele, devemos ser como a água: não ter formato fixo e nos adaptarmos a qualquer situação. Essa é a base filosófica do Jet Kune Do, que compreende que não há um caminho fixo para o aprendizado, mas que ele se efetiva na busca e no próprio caminhar.
Quem conhece Kierkegaard deve ter notado a similaridade de ideias com o Jeet Kune Do. Em primeiro lugar, Kierkegaard também era um anti-dogmático, pois centrava sua batalha contra os grandes sistemas filosóficos do idealismo alemão (Hegel, Kant, etc). Mas, para além disso, a similaridade encontra-se na maior contribuição de Kierkegaard para a psicoterapia: a comunicação indireta.
Toda a "terceira força em Psicologia" nasce em contraposição à Psicanálise e o Comportamentalismo, e adota a não-diretividade como modo de atuação em oposição às intervenções realizadas de modo ativo. Não-diretividade significa o não-confronto, de modo que entende que a clínica não é um ringue de luta. A psicoterapia não é um lugar para competição ou embate. O(a) terapeuta deve ser compreensivo e evitar embates desnecessários.
Com isso, parece que Kierkegaard e Bruce Lee seguem caminhos opostos. Mas não é verdade. A comunicação indireta de Kierkegaard se efetiva "indo até onde o outro se encontra", e isso requer a adaptabilidade. "Seja como a água, meu amigo!" diria Bruce Lee para o(a) terapeuta iniciante.
No lugar do campo de batalha, podemos entender que a terapia é um grande teatro. Mas não porque estamos simplesmente atuando. É um teatro porque estamos ali como coadjuvantes, e não protagonistas, nos adaptando à peça e criando situações para que a pessoa atendida (essa sim a protagonista) possa "brilhar".
Em Kierkegaard, esse teatro é um teatro de marionetes, já que ele utilizava diversos pseudônimos para ir até onde seu leitor se encontrava, e falar a partir dos critérios e valores do leitor. Assim também é na psicoterapia. Devemos entender o que está em jogo para cada pessoa, nos adaptar, e partir de onde ela se encontra. Esse é o modo de atuação mais efetivo. Não porque seja "eficaz", como diz a ciência moderna. Mas porque é rigoroso, já que tem o rigor de buscar respostas e fundamentos na própria existência.
Essa discussão também está presente nas seguintes plataformas:
Muito superficialmente: Kierkegaard foi um anti-dogmático bastante imperfeito, já que não repudiou certa doutrina, esmagadoramente dogmática, nos seus escritos "sérios". Por isso, é preciso lê-lo com filtro ligado para remover os ostinati que, a todo momento, tendem a poluir sua escrita - bem verdade que não é o único grande pensador que requer tal esforço adicional. Na analogia do teatro, o terapeuta* não faria mais o papel do crítico, ao observar com atenção e, baseado na sua crescente experiência e capacidade de reconhecer a evolução dos estilos, poder refinar a atenção para entender melhor os motivos pelos quais aquela personagem/autora preferiu escrever como o fez?
Contraditoriamente, a água - em geral - se faz elemento de desconstrução justamente quando, em torrente, altera…