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A monogamia filosófica como menoridade intelectual no interior da Psicologia



É bem comum o afã na busca por identidades capazes de delimitar um modo de pensar e agir, sobretudo para quem está começando sua jornada profissional ou acadêmica. Há uma tentação muito grande em resolver a questão buscando algum tipo de filiação. Já durante a graduação, estudantes de psicologia passam a se definir como analistas do comportamento, cognitivistas, psicanalistas, fenomenólogos(as), humanistas etc. Com isso, adentra-se um certo tipo de clã e adquire-se uma identidade e pertencimento a um grupo e uma tradição. Por um lado, essa filiação ajuda a delimitar um roteiro de estudos e um percurso profissional. Na Psicanálise, o pertencimento impõe o tripé formativo em análise, supervisão e estudo. Outras filiações impõem outros tipos de percurso. Por outro lado, contudo, a filiação acaba servindo como um certo tipo de proteção que promove um fechamento à possibilidade de debate e contraposição de ideias. É bastante incomum, no campo da Psicologia, um debate entre diferentes vertentes e perspectivas. Cada uma delas parece ocupar apenas seu próprio feudo e, com isso, a possibilidade de trocas é reduzida drasticamente. Se a Psicologia é um campo de dispersão, como dito por Ana Bock, então estamos cada vez mais dispersos e isolados. Não conversamos ou debatemos.


No campo da fenomenologia-existencial, a busca por uma identidade parece acentuar-se ainda mais. Não existe uma única fenomenologia, mas muitos e múltiplos modos de se fazer fenomenologia. Com isso, o problema da identidade se coloca novamente em questão. E o modo como ele costuma ser comumente resolvido é pela busca de uma filiação filosófica. Então diversos(as) autores(as) definem-se como heideggerianos(as), sartreanos(as), seguidores(as) de Merleau-Ponty, de Kierkegaard, de Nietzsche, entre tantos(as) outros(as) pensadores(as). Assim como no campo da Psicologia em geral, há o lado positivo da imposição de um foco de estudo. Estudar apenas um autor torna a tarefa do estudo mais viável, e torna-se mais fácil alcançar profundidade e rigor na obra de apenas um(a) autor(a) que em um conjunto mais amplo. O lado negativo, por outro lado, é que o debate se torna enfraquecido e as trocas são drasticamente reduzidas. Vira tudo uma grande competição de times. Cada pessoa passa a atuar como torcedor(a) e defender com unhas e dentes seu pensador de estimação. A isso eu chamo monogamia filosófica. Há essa ilusão de que realmente necessitamos nos filiar a um pensador ou tradição, como se isso fosse resolver grandes questões ou trazer maior rigor à nossa atuação profissional. Ledo engano... O que ocorre é que acabamos nos transformando em uma espécie de museólogos ou arqueólogos, sempre escavando e celebrando obras do passado. Nada se cria, pois tudo já está dito nas escrituras sagradas do(a) autor(a) eleito(a) para louvor.


Embora Kant seja um autor criticado pela tradição filosófica e existencial, é preciso apontar seus acertos. E um desses acertos ocorre no texto Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (O que é esclarecimento?). Nele, Kant aponta a posição de menoridade em que a própria humanidade se coloca ao não utilizar a total capacidade de suas faculdades. Embora ele enfatize sobremaneira o uso da razão, podemos deslocar essa discussão para o debate levantado no presente texto. Não seria também um ato de menoridade filiar-se monogamicamente a um pensador ou a uma tradição? Não seria tal atitude um modo de afirmar a incapacidade criativa, crítica e de pensamento? Temos realmente respostas prontas a todas as perguntas, nas obras que nos precederam?


Em um momento de ascensão dos algoritmos, a busca e escavação de textos, em um trabalho de leitura repetitivo e maquinal, é algo que pode ser realizado por bots. Isso é absolutamente factível, e torna o trabalho de grande parte dos acadêmicos completamente obsoleto. Todos aqueles que se dedicam a resumir obras do passado serão inevitavelmente substituídos pela máquina, mais cedo ou mais tarde. E o que resta então? Indagar novas perguntas, trazer novas respostas a velhas perguntas, e exercitar a criatividade e o senso crítico. Para isso, no entanto, é preciso romper com qualquer tipo de monogamia intelectual, pois qualquer avanço só será possível em meio ao debate e contraposição de diferentes ideias e perspectivas.


Mas não é necessário aguardar esse apocalipse algorítmico para obter ganhos com essa mudança de postura. Em verdade, já sempre estivemos e estamos perdendo quando nos filiamos de maneira decisiva a este ou aquele modo de pensar. Os especialismos são algo relativamente novo na história do pensamento humano. As disciplinas científicas só se estabeleceram como campos autônomos após o século XVIII, que corresponde também à ascensão da burguesia e do modelo econômico-produtivo capitalista. O que havia antes? Livres pensadores e polímatas, que se dedicavam e tudo o que lhes interessava, e faziam avançar o conhecimento na direção de duas próprias necessidades. Foi assim que surgiu o cálculo, com Newton e Leibniz, em duas formas distintas, para resolver questões distintas no campo da Física. Foi assim também que surgiu a Psicologia, em sua origem filosófica e sua origem experimental, sendo produzida por pessoas que não se denominavam como psicólogas. Esse modo de fazer parece ter sido esquecido, em meio a um gradativo processo de alienação do trabalho e do conhecimento, que parece servir única e exclusivamente ao capital. Afinal, a quem interessa a impossibilidade de debate entre diferentes ciências, ou mesmo entre diferentes perspectivas dentro de uma mesma disciplina? Com certeza não interessa ao avanço do conhecimento humano, mas talvez sirva ao lucro de algumas poucas pessoas e corporações.


Talvez seja o momento de resgatar antigos modos de fazer, de romper com especialismos e ditames disciplinares. Talvez seja a hora de meter o bedelho fora de nossas áreas, mas também de abandonar a perspectiva de ultra-especialização e consequente filiação filosófica. Que possamos então ter menos heideggerianos, sartreanos, nietzscheanos, foucultianos etc, e mais livres pensadores(as). Que possamos então construir uma maioridade intelectual abandonando toda e qualquer monogamia de pensamento. Que o pensamento possa tornar-se livre, espontâneo e criativo. A fenomenologia-existencial, a Psicologia e a Ciência como um todo necessitam urgentemente disso.

 
 
 
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