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A Obra de Amor que Consiste em Recordar uma Pessoa Falecida: Um Ensaio sobre Luto e Clínica


Kierkegaard, em “As Obras do Amor”, comenta sobre a obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida. Inicia o texto trazendo à luz a ideia de que não seria possível deixar passar pela questão da morte sem falar de amor e vida, e traz à tona que perceber a vida através da morte é mostrar-se vulnerável. Comenta que a morte traz para a percepção de quem se dispõe a olhá-la aquilo que a vida falha em trazer: a igualdade. Todos os seres humanos morrem de formas iguais e, como irmãos consanguíneos, não obtém diferença nenhuma ao partilhar do terreno da morte.


O autor reflete em seguida que é observando a relação de uma pessoa com os mortos que se descobre quem ela realmente é. Ora, continua, quando as pessoas interagem umas com as outras, interagem em relação, com reações que interferem diretamente no rumo da conversa, relacionamento etc. Isso não ocorre com o morto, pois este não tem nenhuma capacidade de interferir, seja direta ou indiretamente, na relação que o vivo estabelece com ele. Não há diálogo, nem dança e nem relacionamento, o vivo só pode mostrar a si mesmo, pois é o único ser capaz de ainda modificar-se.


A partir daí, Kierkegaard compreende que a obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida é uma obra de desinteresse. Compara novamente a relação dos vivos entre si: quando expressamos nosso amor e recordações esperamos sempre retribuição e correspondência. Mesmo no amor de pais para com os filhos que ainda não nasceram, espera-se que, em algum momento, que este amor será retribuído de alguma forma. A obra de amor que consiste em lembrar uma pessoa falecida é desinteressada pois o morto não retribui o amor. Esta obra se mostra como um dever sem recompensa, sem fundamento, e até deprimente, mas, diz, trata-se de um dever eterno.


Além de desinteressado, este dever também é livre. Seguindo o pressuposto que o saudoso se mostra exatamente como se é em relação ao morto - como foi descrito anteriormente, o morto não interfere na relação de maneira nenhuma - e que o relembrar uma pessoa falecida é um dever sem recompensa, a forma que se ama, que se lembra e que se relaciona com a morte de um ente querido é livre, ou seja, não precisa seguir normas e nem decoro.

Aqui, Kierkegaard questiona o decoro. Diz que, no início, podemos até seguir algumas normas sociais - derramarmos algumas lágrimas isoladas no velório; mas conclui que, após determinado tempo nós vivos nos vemos livres deste dever, já que o morto não pode cobrar esta obra. Ora, se não há interesse e nem nenhuma amarra ou cobrança e a pessoa se mostra como é: eis aí uma relação de liberdade.


O autor ainda sugere que a obra de amor que consiste em recordar uma pessoa falecida é o mesmo que ser fiel. Comparando com os vivos, poder-se-á usar a desculpa que o outro mudou e por isso deixei de amá-lo ou por isso o traí. Em relação ao falecido, só o vivo muda. O tempo passa e nada se cobra, o dever de se recordar carece da fidelidade daquele que permanece vivo.


Finalmente, conclui que recordar-se dos que não mais vemos é igualmente importante, devemos amar aqueles com quem convivíamos e também aqueles com quem convivemos. Mas deixa claro que essa recordação não pode “separar-nos dos que conosco convivem”.


KIERKEGAARD, IVANA E PATRÍCIA


Minha paciente da Clínica de Urgências Psicológicas (CUP) viveu seu luto, nomenclatura que Kierkegaard não utiliza. Como se tivesse lido o texto de Kierkegaard, Ivana compreende seu dever de relembrar do melhor amigo e se mostra nessa relação; mostra sua criatividade quando escreve uma música para ele e mostra sua forma de viver. Logo na primeira sessão queixa-se de não conseguir chorar essa perda, e traz para a conversa o fato de ter dificuldade de expressar os próprios sentimentos bem como uma “herança” familiar de desviar o olhar para aquilo que “não tem jeito”. Conta como sua mãe a incentivou a não chorar pelo que já estava feito, conta como o amigo era “intenso e cheio de vida” enquanto ela era o contrário. Nessa relação, enquanto o amigo estava vivo, ele a auxiliava a ser mais direta e a se colocar de forma mais agressiva no mundo, enquanto ela o sugeria o contrário: calma e ponderação. Frente ao falecido, Ivana se percebe só e se regula só. “Estou de pé", comenta no início do terceiro encontro, e diz estar surpresa pois não sabia que seria possível.

Quanto ao desinteresse, aparece na forma de lamento. Ivana herda coisas de seu amigo falecido, o celular, o notebook, uma máquina de escrever, roupas e posters. Sente-se mal, inicialmente, por obter esses ganhos, como se soubesse que Kierkegaard orienta o dever de recordar da pessoa que se foi sem segundas intenções. Eventualmente, mostra a si mesma novamente, em sua capacidade de re-criar o que ganhou “me imagino na minha casa e usando as roupas dele”. Ivana imagina seu futuro e sua vida, evidenciando que, diferente dos mortos, possui a capacidade dos vivos de mudar tudo, mas ainda se apega ao seu dever: gostaria de viver sua vida como o amigo sempre a sugeriu, com intensidade, usando as roupas que eram dele e buscando vida que ela gostaria de ter (independência financeira, criando músicas e textos etc).


Este amor se mostra de forma livre quando foge do convencional - “eu ainda não chorei” - e aparece no que faz sentido para quem fica, Ivana maquia o amigo que jaz no caixão, pondera como poderá tatuar no próprio corpo algo que a lembre dele, que simbolize a amizade dos dois e, acima de tudo, quando exprime o desejo de contemplar outros amigos que passam por situações semelhantes. Diz que sabe que fez o que pode, se frustra com a realidade, com a morte do amigo, dita, evitável. Entende a decisão “mas eu queria que tivesse dado errado”, passa a desejar que dê errado para todos que ela conhece e passam por isso, conta das histórias que ouviu e decide fazer pelos amigos o que já havia feito por este: se relacionar com verdade, conforme podia e torcer para as tentativas futuras darem errado.


Se depara com o peso da decisão, mas mostra-se fiel, diz se tratar da memória. Lembra dele com frequência, aprecia os lugares que passaram juntos física e existencialmente. Exprime medo de esquecer, fala de novo da tatuagem.


Kierkegaard pergunta por quanto tempo dura o lamento do enlutado, responde que não se sabe, bem como “o saudoso não pode saber exatamente por quanto tempo estará separado do falecido.” Isso garante ao saudoso o esforço de lembrar-se sozinho e Ivana conhece esse esforço, “a tatuagem é para eternizar” na pele aquilo que viveu em vida, que não vive mais.

Acima de tudo, Ivana segue a última recomendação de Kierkegaard. Não perde de vista aqueles que ainda consegue ver, ainda que compreende a obra de amor de recordar uma pessoa falecida como o mesmo dever que é amar aqueles que ainda vivem, incluindo ela mesma.


Quanto à terceira pessoa nesse processo - eu - me limitei a observar com atenção e aprender na vida aquilo que antes fora escrito, mesmo que ainda não tivesse lido. Me limitei a ouvi-la quando se queixou que se sentia deslocada ao falar para os que ainda estão na sua vista sobre aquele que não mais vê. Observei com grande emoção uma obra de amor livre, pois se mostra espontaneamente e da maneira que diz respeito a ela - e só a ela mesma; desinteressada, pois reconhece a dor de não receber mais a correspondência.


Ivana é um nome fictício, utilizado para proteger a identidade dessa pessoa atendida por mim, e significa “agraciada por Deus”.


Patrícia Rios é Psicóloga (CRP 05/66963), e atualmente cursa a especialização em Psicologia Clínica na Perspectiva Fenomenológico-Existencial, no IFEN.

 
 
 

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Belíssimo!

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