E por que falar sobre o luto?
- Jaynete França
- 4 de nov. de 2022
- 6 min de leitura
Atualizado: 26 de dez. de 2022

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A experiência do luto, assim como tantas outras inerentes à existência humana, é delicada e muito complexa para ser abordada de forma rasa e displicente. Com a recente emergência da pandemia de COVID-19 em 2020, a temática permeou espaços nas diversas mídias de comunicação. As milhares de mortes diárias no Brasil levantaram, em algumas pessoas, reflexões sobre valores morais, laços, vida e morte. Simultaneamente, muitos especialistas na área da saúde mental teceram discussões sobre os impactos negativos causados às pessoas enlutadas, tanto pelo isolamento social quanto pelas mudanças e restrições executadas nos rituais fúnebres.
São milhares de ausências experienciadas, segundo o estudo publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (2020) que, com apoio em simulações demográficas computacionais, mostrou que a cada pessoa falecida em decorrência do SARS-Cov-2, ao menos nove familiares ou pessoas próximas são afetadas pelo luto. Tendo isto em vista, psicólogos, psiquiatras e demais especialistas da saúde mental, endossaram a importância da participação daqueles no entorno dos afetados, acolhendo as diferentes expressões de luto, e fornecendo um suporte aos enlutados.
Acolher, neste caso, pode parecer um ato simples – e de fato poderia ser - mas se dispor, se colocar junto, ou até mesmo ser empático nos dias de hoje, não tem sido uma tarefa fácil. Sob o olhar da ciência, pelos olhos de boa parte dos profissionais da saúde mental, a importância deste acolhimento se dá em prol de uma prevenção. Intui-se evitar o surgimento de um luto que qualificam como complicado, ou seja, o enlutado vive uma intensificação do sofrimento vinculado à perda da pessoa e apresenta dificuldades em seguir a nova realidade rotineira.
A tomada dessa experiência de perda, é mensurada e pautada em critérios. Analisa-se intensidade de sofrimento no decorrer do tempo e como isso atrapalha o desempenho ou produtividade social do indivíduo enlutado. Esses são critérios estabelecidos em manuais diagnósticos e estatísticos utilizados como norma orientativa na área da saúde mental (os DSM’s III, IV e V). O que vemos então, é a experiência do luto ser recortada e, de alguma forma, hegemonizada, universalizada. Perde-se de foco o indivíduo, a pessoa enlutada e a experiência dela. Acontece um protocolamento, uma padronização do que deveria vir a ser essa vivência de luto. E com isso, podemos medicar. Pois, a dor do luto é tamponada pelo sofrimento que a pessoa demostra e esse, que é compreendido em sintomas, pode ser tratado, medicado.
Durante o período pandêmico, emergiram debates sobre o aumento de possíveis transtornos psíquicos em decorrência de tantas transformações sociais. Essa é uma questão que demanda cautela, pois, perpetua-se uma tendência, bem fomentada no meio social, em ver o sofrimento, a ansiedade e a tristeza como possíveis patologias a serem tratadas, para que, assim, não afetem os projetos de vida.
Nossas experiências e relações em sociedade são muito complexas. Ao pensar o luto, para além deste viés científico, temos todo um emaranhado de implicações sociais, políticas, econômicas, religiosas, enfim, culturais, que atravessam nossas percepções acerca da finitude e concomitantemente o luto. Diante de catástrofes ou desastres, situações que afetam um grande número de pessoas de forma simultânea, é esperado que se tenha movimentos solidários e empatia pelos que sofrem. Contudo, esta não é a única possibilidade e isso foi sentido e reverberado por diversas pessoas enlutadas.

Em 2020, através das mídias de notícias, acompanhamos a manifestação da ONG Rio de Paz que colocou cruzes em uma praia do município do Rio de Janeiro, como uma forma de protesto e memória às vítimas fatais da COVID-19. Em seguida, algumas pessoas alegaram que o ato era mentiroso e que estavam ofendidas, derrubando, propositalmente, algumas dessas cruzes.

Nesse momento, quem caminhava no local foi Márcio, um pai enlutado que havia perdido o filho há pouco tempo na pandemia, frente à atitude denominada por ele com o desrespeitosa, decidiu recolocá-las. Márcio, em uma entrevista concedida ao jornal O Globo, disse: “Gostaria que as pessoas tivessem mais empatia e compaixão pelas pessoas, pelas vítimas, por todos nós”. Este pai, foi chamado em 2021 para depor na CPI da COVID (precisa explicar?!) e compartilhar o próprio relato de dor. Ele disse em depoimento ter recebido “deboches e sorrisos de ironia” em relação a morte do filho, e afirmou que essa foi a pior parte da experiência de luto.
Basta uma busca pelos canais virtuais, blogs, jornais e revistas em meio eletrônico para encontrarmos relatos similares ao de Márcio. Durante a pandemia, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie que vivenciou o luto pela morte do pai em 2020. Compartilhou a própria experiência através da escrita, em suas Notas sobre o luto. Chimamanda relatou: “O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave e raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tema ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras” (Adichie, 2021, p. 14).
O relato da escritora revela a profundidade dessa lida. O quanto essa experiência, apesar de comum a todos os viventes, mostra-se particular. Pois o relato, é dela, sobre o sentimento que punge na própria carne. Os pêsames foram rasos, ainda que bem intencionados. No próprio corpo a autora disse ter reverberado o luto com dores e até mesmo sabores indesejados
Nesta semana tivemos o dia de finados. E um pouco antes, o resultado das eleições presidenciais de 2022. Os apoiadores do candidato derrotado começaram a compartilhar em suas redes a palavra Luto. Com um total afastamento de sentido, de intensidade, com falta de empatia às pessoas enlutadas, eles compararam a frustração de não ter o candidato deles vitorioso à morte de uma pessoa amada. Logo, em resposta, Déa Lúcia, mãe do ator Paulo Gustavo, falecido em decorrência da pandemia compartilhou um texto de autoria desconhecida, para lembrar aqueles eleitores, que se diziam em luto por frustração, a real experiência dessa lida.
Está de luto? Vem comigo, vamos falar sobre o que é luto. Você não está em luto, só está magoado porque suas vontades não foram atendidas. O luto merece ser respeitado, pessoas estão sofrendo de verdade e você brincando de luto por causa de um candidato. Se você sentisse a dor do luto, parava de brincar. Luto, é uma dor forte, dilacerante que rasga a alma. Luto é preparar o café e esperar pelo outro, é perceber que aquele lugar está vazio, é as velas apagadas nas datas comemorativas, é bater palmas para um ser invisível. É pegar o celular e aguardar aquela ligação, rever aquela foto, abrir os braços e não ter quem abraçar. É passar a mão no colchão e não sentir mais o calor daquela pessoa, ver o quarto intacto e se perguntando quando ele volta para bagunçar. É sentir-se culpado por tentar ser feliz de novo. Luto é você acordar desesperado na madrugada com crise de pânico pedindo a Deus para trazer o outro de volta, é não saber o que fazer com as roupas, o perfume, a comida que o outro gostava. Luto é você tentar comer e a comida não descer, perder peso, isolar- se e recusar-se a viver. Luto é você guardar uma lembrança e chorar toda vez que escuta aquele nome. Luto é conversar com um concreto esperando que ele te responda, é imaginar o outro do seu lado mesmo não estando. Você não está em luto, só está magoado porque suas vontades não foram atendidas. O Brasil segue vivo, não seja um filho mimado, respeite o outro, somos um país democrata.
Sem Mais!
Autor desconhecido.
Essa mãe enlutada nos lembra que essa experiência não merece ser desrespeitada. Ser apropriada e ter o sentido e complexidades removidos. Ser usurpada com outros vieses, sejam políticos ou quaisquer outros. O luto é como um espinho na carne. É ter de lidar com a presença constante de uma ausência que não pode ser substituída ou recuperada. A morte de um ente querido não deve ser banalizada. É uma experiência que merece a devida atenção. Luto não é ressentimento. E ressentimento não é luto.
Cabe a psicologia e ao psicólogo atentar a certas articulações de sentido, modos de relação que nos atravessam cotidianamente e reverberam em nossa lida social e pessoal. Aqui fomentamos um momento de reflexão. Um momento de pausa para atentar e nos demorar em pensamentos. Aqui o proposto se afasta de respostas, métodos universais, explicações razoáveis de modos de lida, ou de causas e consequências. Buscamos, através dessas reflexões, fomentar inquietações e mais reflexões.
Excelente reflexão!