Por uma Psicologia menos Individualista
- Victor Portavales Silva
- 1 de out. de 2024
- 3 min de leitura

Tem crescido nas redes sociais um movimento de defesa de determinadas perspectivas em Psicologia em detrimento de outras, sob o argumento de cientificidade. Em tese, intervenções baseadas em protocolos validados por ensaios clínicos randomizados e analisadas através de revisões sistemáticas e metanálises dariam conta da complexidade do sofrimento humano. A primeira pergunta é: será mesmo? Será que toda demanda clínica que chega ao consultório pode ser diagnosticada e possui um protocolo bem estabelecido de tratamento? E mais, como ficam as comorbidades? Os tratamentos foram validados para casos de sobreposição de diagnósticos? Essas perguntas ainda merecem maior esclarecimento, mas não são o foco deste texto.
O que venho discutir é o caráter alienante dessa proposta terapêutica, que não enxerga suas próprias pressuposições e posiciona a Psicologia em um lugar previamente delimitado e inquestionado. A principal pressuposição é de que as queixas de que a Psicologia clínica deve se ocupar são majoritariamente de caráter individual, psíquico, e podem ser resolvidas por protocolos clínicos previamente definidos. Não é isso o que observo em minha prática profissional. Diversas queixas tem origem em sofrimentos que decorrem do sistema econômico-produtivo vigente e suas contradições, bem como do bombardeio de propagandas neoliberais que centram no indivíduo tanto a origem como a possível solução para o sofrimento. Muitas outras não se enquadram em um diagnóstico, e tantas outras decorrem da precariedade e falta de recursos.
Alguns poderiam argumentar que não é tarefa da Psicologia se ocupar de problemas estruturais, econômicos e sociais. Trata-se de um argumento já há muito superado dentro da própria Psicologia, já que ignora por completo o campo da Psicologia Social, por exemplo. Esse argumento poderia ser refinado, dizendo que não cabe especificamente à Psicologia Clínica ocupar-se dos problemas citados. A isso só posso responder que somente uma proposta individualista, individualizante, alienada e alienante poderia ignorar tais problemas. Ainda que o trabalho individual não seja capaz de resolver questões tão amplas, há sempre espaço para tematização do sofrimento gerado por essas mazelas. A conscientização já tem um caráter emancipador por si só, como propõe Martin-Baró. Ainda que não elimine o sofrimento, dá um sentido e um direcionamento para ele.
A Fenomenologia-Existencial, sobretudo em seu enfoque hermenêutico, compreende que todo existente deve ser entendido em seu caráter de ser-no-mundo, o que significa que o campo histórico e social que institui os sentidos determinados em uma dada época possuem uma centralidade no campo de análise. Em outras palavras, precisamos compreender nosso tempo histórico para compreender a pessoa que busca ajuda no consultório. Propor um tratamento que ignore a historicidade dos acontecimentos é como tomar a parte pelo todo, é deixar de lado um aspecto central da queixa.
Compreender nosso tempo histórico engloba tomar ciência dos impactos de um capitalismo tardio nas sociedades periféricas em sua modalidade neoliberal. Dentro desse contexto, todos somos convocados a nos exaurirmos de bom grado sob o pretexto de nos tornarmos rentáveis. A figura do empreendedor de si, debatida por Byung Chul-Han, é o exemplo a ser seguido em um tempo em que as garantias sociais são reduzidas, o emprego formal é gradativamente reduzido e cada um deve dar conta, individualmente, de seus problemas.
Discussões sobre essas questões não serão jamais vistas entre os divulgadores da autoproclamada Psicologia Baseada em Evidências (PBE). Ao proporem tratamentos supostamente eficazes, tais figuras não se perguntam: Eficazes para quem? Visando que finalidade? Não se questionam porque jogam o jogo, replicam o discurso neoliberal prometendo sucesso e renda para seus seguidores. Mas cabe pensar até que ponto tais modalidades de tratamento, que ignoram o contexto social, não servem a retroalimentar e manter de pé o sistema vigente.
Frente ao cenário que se anuncia, de investida da PBE contra outros modos de se fazer Psicologia, é preciso ampliar os debates e lutar por uma psicologia menos individualista. A Psicologia Fenomenológica e Existencial pode ser uma das vozes a se somar ao debate, já que se propõe a superar o solipsismo das perspectivas subjetivistas e individualizantes. Ao resgatar o caráter histórico dos fenômenos, a Fenomenologia-Existencial nos impõe a tarefa de entender os sentidos em jogo no nosso tempo histórico atual. Por romper com a dicotomia entre sujeito e objeto ou homem e mundo, essa perspectiva oferece uma alternativa que traz respostas às propostas individualistas da PBE.
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