Resenha Fenô #3: Pain of Salvation - Be
- Victor Portavales Silva
- 14 de nov. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 26 de dez. de 2022
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Você gosta de rock progressivo? E que tal uma ópera metal? Pain of Salvation é uma banda sueca de metal progressivo liderada por Daniel Gildenlöw que traz ótimos trabalhos desde 1991. Mas hoje falaremos do álbum de 2004, intitulado “Be”. Fenomenologia e “Be” tem tudo a ver, em especial na aproximação com o pensamento de Martin Heidegger. O título do álbum já dá o tom, pois “Be” se traduz em português por “Ser”. Mas a discussão sobre o sentido do ser não é a única coisa em comum com o pensamento de Heidegger. “Be” narra a história de um Deus (ou Deuses) que, na tentativa de compreender a si mesmo(s), cria a humanidade à sua própria imagem. O que se desenrola a partir daí é muito próximo da discussão que Heidegger faz a partir da crítica à técnica moderna, pois, no álbum, a humanidade acaba destruindo a si mesma e o planeta em que habita, com o advento da tecnologia e o acirramento das contradições do capitalismo.
Sendo um álbum progressivo, “Be” possui um conceito bem definido e precisa ser ouvido em sua totalidade, porque cada música narra um trecho da história que compõe o álbum, e possui importância imprescindível para a compreensão plena do mesmo. No desenvolvimento da narrativa musicada, somos apresentados a diversos personagens, dos quais se destacam:
Animae: que representa uma entidade cósmica (Deus, ou Deuses), criadora do Universo e da Humanidade.
Nauticus: Nome fictício da sonda espacial mais inteligente já criada, que navega pelo espaço em busca de respostas para salvar a Terra e a humanidade.
Imago: É a imagem da humanidade em sua forma mais crua e natural. Também se trata de um reflexo de Animae, já que foi criado à sua semelhança.
Mr. Money: Personagem principal da história, é uma caricatura do capitalismo, materializada na figura de um bilionário excêntrico e ganancioso (Tudo a ver com nossa época atual).
Dea Pecuniae: Contraparte feminina do Mr. Money, pode ser encarada como uma representação do pecado.
O álbum está organizado em cinco momentos, desenvolvidos ao longo de 15 músicas:
Prólogo
01. Animae Partus ("I Am") - A God Is Born ("I Am") 1:48
"BE" (CHINASSIAH)
I Animae Partus
All in the Image of
02. Deus Nova - New God 3:18
03. Imago (Homines Partus) - Imago (Man Is Born) 5:11
04. Pluvius Aestivus - Summer Rain 5:00
Of Summer Rain (Homines Fabula Initium) - Of Summer Rain (The Story of Man Begins)
II Machinassiah
Of Gods & Slaves
05. Lilium Cruentus (Deus Nova) - Blood Stained Lily (New God) 5:28
On the Loss of Innocence
06. Nauticus (Drifting) - Nauticus (Drifting) 4:58
07. Dea Pecuniae - Goddess of Money 10:09
I Mr. Money
II Permanere
III I Raise My Glass
III Machinageddon
Nemo Idoneus Aderat Qui Responderet
08. Vocari Dei - Messages to God 3:50
Sordes Aetas - Mess Age
09. Diffidentia (Breaching the Core) - Mistrust (Breaching the Core) 7:26
Exitus - Drifting II
10. Nihil Morari - Nothing Remains
(Homines Fabula Finis) - The Story of Man Comes to an End 6:21
IV Machinauticus
Of the Ones With no Hope
11. Latericius Valete - If You Are Strong, Be Strong 2:27
12. Omni - Everything 2:37
Permanere?
13. Iter Impius - Wicked Path 6:21
Martius, son of Mars
Obitus Diutinus
14. Martius/Nauticus II - Martius/Nauticus II 6:41
V Deus Nova Mobile
...and a God is Born
15. Animae Partus II 4:08
Na primeira música somos apresentados a Animae e sua dúvida primordial. A música “I am” narra uma crise existencial dessa figura originária, que constata, mas também questiona, sua própria existência. Como consequência dessa crise a humanidade é criada, na busca por compreensão.
A segunda música, “Deus Nova” narra o crescimento populacional vertiginoso. Se no ano 10.000 antes de Cristo o mundo contava com 1 milhão de pessoas, no ano 2.000 depois de Cristo já haviam 6,08 bilhões de vidas nesse planeta. Com essa enorme multiplicidade, também aumenta a dúvida, de modo que chegamos na terceira música.
“Imago” narra a curiosidade a busca por respostas, que faz brotar a ciência, mas também a técnica. Surge a vontade e o ímpeto de controlar a natureza e a própria humanidade. Se no início da música o motor é a curiosidade, no final o que gera movimento é a ganância e a sede de poder. Os versos “Take me to the...” viram “Give me all the...”, sintetizando e contrapondo essas duas tendências humanas (curiosidade e ganância).
“Pluvius Aestivus” narra uma grande chuva, que parece ser uma menção ao dilúvio bíblico. Essa chuva surge como uma grande catástrofe para a humanidade. A música seguinte, “Lilium Cruentus” narra o desejo humano, falando sobre amor, sonhos, e também morte.
A sexta música, “Nauticus”, é um lamento musicado, quase uma oração. A voz principal canta: “Oh Lord, won’t you help me find a way? When I’m lost and lead astray... To help me bend to stay unbroken, oh Lord!” Portanto a viagem espacial da sonda Nauticus também é acompanhada pela tentativa de comunicação com o divino. Mas essa oração é quebrada pela interação entre Mr. Money e Dea Pecuniae, representando o que há de mais terreno.
A sétima música, intitulada “Dea Pecuniae” desenvolve em mais detalhes essa interação. Elementos como ganância, narcisismo e luxúria pavimentam o terreno para o apocalipse que virá em seguida. A última frase da música é absolutamente simbólica: “There will be nothing left! No! Nothing left, but Money.” O sentido da palavra Money é duplo, pois representa o dinheiro, mas também o personagem principal e seu ego autocentrado.
A oitava música, “Vocari Dei” é um instrumental que nos prepara para o que vem a seguir. “Diffidentia (Breaching the Core)” é uma música sobre introspecção e a busca interior por repostas, que vem acompanhada de um regozijo com si mesmo. A música diz: “We’re breaching the core... To taste it, to touch it, to cut it, to crave it, enclave it, pluck my eye”. Cheia de si, a humanidade então se revolta contra Deus e passa a buscar em si mesma as respostas de que tanto necessita. Mas o final não é nada animador, pois se constata: “I failed, we failed...”
“Nihil Morari” coroa a dominação humana da natureza por meio da técnica. Tudo então passa a carregar o nome da humanidade. O mundo passa a ser tomado como um grande depósito de recursos a serem explorados de forma inesgotável. Além da técnica, o capitalismo também se pronuncia: “When there’s nothing left for us to break, use, abuse or rape, then you’ll free to count how much you saved.” A relação técnica é complementada pela relação econômica com a realidade. E um novo crescimento populacional se inicia, de maneira vertiginosa. Em 2.050 depois de cristo passam a haver mais de 9 bilhões de pessoas. “Latericius Valete” então narra a queda, pois 10 anos depois, em 2.060, só existem 1.2 milhões de pessoas.
“Omni”, a décima segunda faixa, narra uma viagem espacial. Em seguida, “Iter Impius” fala sobre a chegada da humanidade em Marte. Mr. Money sai de sua nave e se depara com um planeta inteiro para si mesmo, pronto a ser explorado e devorado por sua ganância. Contudo, constata sua própria solidão.
“Martius / Nauticus II” é uma retomada da sensibilidade e da emoção, trocando os termos cantados em “Nauticus” por: “I feel every mountain, I hear every tree, I know every ocean, I taste every sea.”
E então “Animae Partus II” encerra o álbum com balbucios de bebê e retoma a frase inicial do álbum: “I am!” Todo o percurso musical se encerra de forma cíclica, voltando ao início.
Quem conhece um pouco da obra de Martin Heidegger pode encontrar nesse álbum diversos paralelos com sua filosofia. A temática do ser, a crítica a técnica, e também a constatação do niilismo e a busca por um novo Deus como escape e salvação. Ouvir música também é uma forma de exercitar a reflexão, e por isso recomendamos a todos ouvir o show inteiro desse álbum, legendado em português:
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