Resenha Fenô #4: Ayreon - The Human Equation (2004)
- Victor Portavales Silva
- 25 de nov. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 26 de dez. de 2022

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O álbum “The Human Equation” do supergrupo holandês Ayreon é uma verdadeira aula de Psicologia. O álbum conceitual de 2004 narra uma história absolutamente intrigante: em meio a uma suspeita de traição, um homem tem um acidente de carro e fica em coma no hospital, passando então por um longo processo de introspecção que é exposto nas músicas. Durante esse processo, o homem se vê confrontado com emoções, memórias, fantasias, desejos, paranoias, medos e tem então de decidir o que será de sua vida a partir dali.
Ayreon é um projeto extremamente ambicioso de Arjen Lucassen, e o álbum “The Human Equation” conta com a participação de músicos já consagrados no cenário do rock e do metal progressivo. Estamos falando de nomes como James Labrie (Dream Theater), Mikael Akerfeldt (Opeth), Eric Clayton (Savior Machine), Irene Jansen, entre tantos outros...
Mas a ousadia de Lucassen acaba produzindo uma obra de arte, o que no inglês costumam chamar de “masterpiece”. O conceito e a execução do álbum são impecáveis, e o show ao vivo é um espetáculo à parte. Ao final da resenha irei deixar o show ao vivo separado em duas partes, para quem quiser assistir. O que posso adiantar é que se trata de uma mistura de show e teatro, que gera um resultado de tirar o fôlego.
Quanto às músicas e à história do álbum, ele está organizado da seguinte forma:


São, portanto, 2 CDs de cerca de 50min, totalizando 1:40h de duração. E ao longo dessa mais de 1h somos apresentados à história e aos dilemas do personagem principal, chamado simplesmente “Eu” (Me) e interpretado por James Labrie. Cada música corresponde a um dia de coma, e tem um “afeto” principal que guia a jornada de introspecção.
A primeira música, “Vigil”, nos apresenta a esposa e o melhor amigo do personagem principal, que se questionam sobre se ele teria ou não tido conhecimento de um caso entre eles, que configuraria uma traição. O clima que predomina é o de paranoia, pois não sabemos se essas personagens são reais ou apenas manifestações da imaginação do “Eu”.
A segunda música, “Isolation”, introduz o clima de confusão mental, isolamento e desespero. Ela narra o início desse mergulho interior em meio ao clima de isolamento perpetrado pela situação de coma. Alguns dilemas existenciais importantes surgem ao longo da música. O coro de afetos canta:
Can't you feel that fire?
Scorching your soul?
A wounded man's desire
Out of control
E complementa:
You've always had complete control
Never thinking twice
You always called the shots, a heart as cold as ice
Demonstrando o quanto o “Eu” tenta controlar a tudo a todos.
A terceira música, chamada “Pain”, fala sobre dor. Mas não apenas a dor física. Nela, “Eu” conversa com a “Agonia”, a “Raiva” e o “Amor”. E, logo na sequência, na quarta música (“Mystery”), retornamos à suspeita de traição. “Paixão”, “Orgulho”, “Amor” e “Agonia” questionam se “Eu” irá morrer... O que só aumenta o clima de confusão. Na quinta música (“Voices”) esse mote se mantém e “Eu” começa a questionar seus próprios sentimentos, o que desemboca na música seguinte.
A sexta música, chamada “Childhood”, é uma retrospectiva da infância de “Eu”. Ele lembra como era tratado pela mãe, pelo pai, e pelos colegas. Curiosamente, a música seguinte (“Hope”) é uma narrativa sobre esperança. Já a oitava (“School”) tem um clima completamente hostil, suscitando afetos como a raiva, o medo e a agonia. A nona (“Playground”), nos traz algum alento na forma de uma música instrumental.
A décima música (“Memories”) é um mergulho na relação da esposa com o melhor amigo de “Eu”, e coloca em confronto “Razão” e “Paixão”. Em seguida, “Love” fecha o primeiro disco de forma magnífica.
O segundo disco começa com “Trauma”. Trata-se de mais uma música de clima hostil, que traz um debate entre “Razão”, “Medo”, “Agonia”, “Paixão”, “Razão” e “Orgulho”. Esse embate nos ajuda a compreender a confusão mental em que se encontra “Eu”. A música seguinte (“Sign”) quebra o clima de introspecção ao retornar à situação da esposa e do melhor amigo.
A décima quarta música (“Pride”) é um confronto com o próprio orgulho, ferido por conta da possível traição, o que é detalhado na música seguinte (“Betrayal”).
A décima sexta música é, para mim, um dos pontos mais altos de todo o álbum. “Loser” tem a maestria de levar o ouvinte à raiva de “Eu” contra seu próprio pai. É difícil não sentir o mesmo afeto ao ouvir a música, o que não significa que todos odiamos nosso próprio pai, mas que a música cumpre com sucesso o papel de passar um modo de afinação específico da vida (a raiva e o inconformismo).
Na décima sétima temos uma reviravolta na narrativa, pois “Accident?” coloca uma pulga atrás da orelha do ouvinte: Teria sido apenas um acidente, uma ação orquestrada (tentativa de homicídio) ou uma tentativa de suicídio? A questão fica em aberto para que qualquer um possa exercer a imaginação e tirar suas próprias conclusões.
“Realization” quebra esse clima ao tratar da possibilidade do perdão. “Disclosure” narra o momento em que “Eu” desperta do coma, e “Confrontation”, a vigésima primeira e última música do álbum, fala sobre o confronto com a realidade concreta e com a vida tal como ela é.
Como se pode observar, o conceito do álbum dialoga de maneira muito íntima com a questão das emoções. A Psicologia científica, desde seu surgimento, tenta conceitualizar e controlar esse tipo de fenômeno, nomeando-o emoção, sensação ou mesmo sentimento. Diversas são as tentativas de compreender a fundo o que está em questão, e manipular o que está em jogo quando alguém se dispõe de determina forma (temerosa, corajosa, triste, feliz, etc). Em termos fenomenológicos, nenhuma dessas formas de abordar a questão é rigorosa. É por isso que Martin Heidegger utiliza uma metáfora musical para pensar essa questão: ele fala de tonalidades afetivas. Por um lado, afetos são modos de estar no mundo. Por outro, não se trata de algo que ocorre no âmbito de uma interioridade encapsulada do “Eu”, do “sujeito”, ou do “aparelho psíquico”. Um afeto é contagiante, ele irradia em seu entorno, e por isso é também uma tonalidade. Tom é um conceito musical, que diz respeito à afinação de uma nota, melodia ou harmonia. Todo compasso musical tem um tom dominante, que define as notas e acordes que são consonantes (soam bem, se afinam) e dissonantes (soam mal, parecem desafinadas). Assim também é na vida. Em termos fenomenológicos, estamos sempre afinados a uma tonalidade afetiva. E o que a música faz é propiciar outros modos de afinação, que são a temática principal do álbum “The Human Equation”. O título do álbum chega a ser irônico quando enxergamos isso, pois não se trata de uma equação ou cálculo sobre a vida. A perspectiva apresentada por Lucassen não é explicativa, mas compreensiva, tal como entendida por Dilthey.
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