Resenha Fenô: Desaplanar
- Victor Portavales Silva
- 12 de mar. de 2024
- 3 min de leitura

Desaplanar (Unflattening, no original em inglês) é um quadrinho de Nick Sousanis. Uma curiosidade interessante é que a obra é originalmente uma dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Columbia, sendo a primeira dissertação a seguir o formato de um quadrinho. Ela foi publicada posteriormente, em 2018, pela Harvard University Press, e chegou ao Brasil em 2018, pela Veneta, ganhando o prêmio HQ Mix no mesmo ano, na categoria "melhor livro teórico".
Meu contato com a obra ocorreu totalmente por acaso. Vi a capa com o nome Desaplanar em um passeio na Livraria Travessa do Barra Shopping, aqui no Rio de Janeiro. Folheei a obra, e a arte chamou minha atenção. Os desenhos não seguiam um padrão rígido ou linear, havia páginas que podiam ser lidas em diferentes direções, e a interação dos elementos na página formava padrões que podiam ser notados ao afastar o olhar e ter uma visão mais geral.
Tudo isso me instigou e me fez pensar: Qual será a mensagem dessa obra? O que ela deseja comunicar? E minha curiosidade foi recompensada com uma grata surpresa. Desaplanar, justamente por ter sido planejado como uma dissertação, trazia questionamentos filosóficos, existenciais, estéticos e artísticos. Se eu tivesse que resumir a obra em poucas palavras, diria que seu objetivo principal é questionar nosso "modo de ver cotidiano". Ou seja, o que ela busca é incentivar um outro olhar, uma outra percepção em relação ao mundo e à vida.
Mas para isso devemos seguir o percurso da obra, que se inicia justamente com um questionamento da cotidianidade. Para isso, o autor elabora a metáfora da planolândia, um lugar feito apenas de elementos planos, que só enxergam coisas planas, e nunca conseguem entrar em contato com a profundidade de uma terceira dimensão. Todos os seres que experimentaram essa profundidade e tentaram comunicar aos demais foram rechaçados, o que sugere uma analogia ao mito da caverna de Platão.
Mas a crítica avança para o modo como costumamos ser moldados em nosso cotidiano. Como nos tornamos elementos uniformes dentro de uma grande massa, um grande aglomerado que podemos chamar de "multidão". Ainda que a obra não faça menção direta a Heidegger (E sim, ela possui referências bibliográficas ao final), podemos pensar em uma articulação com a discussão da impessoalidade presente na obra Ser e Tempo (1927). Nessa obra, Heidegger descreve como somos comumente tomados pelos sentidos cotidianos impostos pela multidão, passando a agir de forma irrefletida, como se fôssemos meros autômatos. Heidegger anuncia então a angústia como uma forma de escape à impessoalidade, sendo este o afeto que permite uma desconexão com os sentidos sedimentados historicamente. Sousanis faz sua crítica por outra via, mas podemos aproximar Desaplanar e Ser e Tempo.
Essa não parece ser a única aproximação possível com a fenomenologia, já que a proposta de um novo olhar também está presente nas Investigações Lógicas (1901), de Edmund Husserl. O que Husserl propõe em suas investigações e na fenomenologia descritiva é justamente romper com um modo de ver presente na filosofia e na ciência de seu tempo. Esse novo olhar consistiria então em um olhar simples, desentulhado, capaz de ver o fenômeno em seu próprio campo de auto-mostração. E Sousanis parece privilegiar esse tipo de olhar. Se por um lado não cita diretamente Husserl, por outro é a Fenomenologia da Percepção (1945) de Merleau-Ponty quem aparece nas referências bibliográficas de Desaplanar. Seria essa uma influência indireta na obra de Nick Sousanis? Não sou capaz de responder de forma definitiva, mas a obra me trouxe à mente as leituras sobre Husserl que tive ao longo da minha vida.

O trecho acima, além de remeter à Fenomenologia da Percepção nos leva também ao conceito de rizoma presente em Capitalismo e Esquizofrenia 2: Mil Platôs (1980), de Giles Deleuze e Félix Guattari. Além de um olhar novo somos apresentados à ideia de um pensamento rizomático, interconectado, complexo, que integra diferentes pontos de vista e se abre à alteridade (a lida com o outro e com a diferença).
A discussão sobre alteridade pode mos levar também à noção de ser-com apresentada por Heidegger em Ser e Tempo, ou mesmo à ideia de uma relação eu-tu tal como discutida por Martin Buber no livro Eu e Tu (1923). No trecho abaixo vemos uma crítica ao solipsismo e ao isolamento modernos:

E a crítica ao pensamento de René Descartes e seu Discurso do Método (1637) também se faz presente em Desaplanar:

E não é justamente o ceticismo e o dualismo cartesianos o que a fenomenologia busca criticar? Pela presença dos questionamentos discutidos aqui e pela apresentação das discussões em um formato poético e esteticamente agradável, considero Desaplanar uma leitura extremamente recomendada para psicólogos(as), estudantes de Psicologia e demais interessados na fenomenologia-existencial. Espero que essa leitura possa trazer tantas reflexões quantas me foram trazidas.
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