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Sobre a fenomenologia da bipolaridade


Algum tempo atrás li certo texto de um proeminente filósofo contemporâneo que tratava da bipolaridade e da temporalidade. Sua análise centrava na relação entre nosso momento histórico e labilidade emocional presente nos quadros bipolares. O argumento principal se relacionava a como nosso tempo promove tanto estados depressivos como estados eufóricos, em uma rápida sucessão. Esse argumento me pareceu estranho, já que os dois afetos (depressão e mania) são opostos. Além disso, embora se possa notar a ambiguidade presente nos diferentes estímulos que nos bombardeiam atualmente, é difícil pensar que a bipolaridade seja um fenômeno histórico tal como proposto pelo autor. A variação de humores entre os extremos da melancolia e da euforia estiveram presentes em alguns existentes ao longo de toda a história da humanidade. O que se poderia dizer é que esse fenômeno só se tornou medicalizado (cooptado pelo poder médico e psi) em uma história recente, dos dois últimos séculos. Mas não é esse o caminho seguido pelo autor.


A coisa fica ainda mais estranha quando o termo "comportamento bipolar" é utilizado no texto. Essa parece uma invenção despropositada, pois a tradição psicopatológica nunca abordou o quadro dessa forma. A bipolaridade é um transtorno do humor, ela teve alguns nomes diferentes ao longo do tempo (loucura circular, doença maníaco-depressiva, e o atual transtorno afetivo bipolar), mas sempre foi descrita em termos da afetividade. Ela não é um transtorno de conduta, ou seja, o que está em questão não é uma alteração no comportamento em si, e sim uma alteração no campo afetivo, que obviamente gera reflexos nos comportamentos.


Em resumo, saí da leitura com a impressão de que filosofar sobre um campo sobre o qual não se tem um conhecimento profundo pode ser um problema. Muito provavelmente o autor não possuía um conhecimento aprofundado em psicopatologia ou mesmo psicopatologia fenomenológica. Conhecer fenomenologia filosófica parece não ser suficiente para habilitar alguém a discorrer acerca de uma discussão do campo da Psiquiatria e da Psicologia. Terminei a leitura triste, porque o autor em questão, profundo conhecedor de Heidegger, perdeu uma boa oportunidade: a de correlacionar os estados depressivos e maníacos da bipolaridade com a noção de tonalidades afetivas em Heidegger.


Tonalidade afetiva (do alemão Stimmung) é um conceito que aparece na obra de Heidegger já em Ser e Tempo (Heidegger, 1988). Nesse texto, a principal tonalidade afetiva descrita é a angústia, caracterizada como uma tonalidade afetiva fundamental por ter a característica suspender as prescrições do mundo (sentidos historicamente sedimentados). A ideia é desdobrada na obra Os Conceitos Fundamentais da Metafísica (Heidegger, 2015), em que o tédio é descrito como uma tonalidade afetiva fundamental e epocal. O tédio seria a marca de nosso tempo, caracterizado pela busca constante de fazeres mas também pela completa falta de sentido e propósito de qualquer fazer. O que há de essencial nessas descrições é a relação entre afetividade e as outras dimensões existenciais. A tonalidade afetiva seria nosso modo de afinação com o mundo, e assim influenciaria por completo nossa experiência de espaço, tempo, corporeidade, alteridade e sentido.


Para além das tonalidades descritas por Heidegger, podemos pensar em diversas outras. Binswanger e Minkowski foram os primeiros a caracterizar as alterações de humor a partir da descrição de mudanças na experiência da espacialidade e da temporalidade. Contudo, talvez seja em Van Den Berg (1966), em seu livro O Paciente Psiquiátrico, o texto em que encontramos boas descrições em primeira pessoa. Nessa obra, Van Den Berg descreve os quadros de depressão e mania na sua relação com o espaço, o tempo e o corpo. Já no Caso Dra Cobling (Boss, 1999), temos a descrição de um quadro marcado pelo afeto da paranoia, em um quadro de esquizofrenia.


Diversos autores (Asch & Gallacher, 2015; Fuchs, 2013; Fuchs, 2014; Pieri & Castellana, 2016) do campo da psicopatologia descrevem a bipolaridade a partir de sua experiência vivida. Embora não façam menção direta à noção de tonalidade afetiva em Heidegger, podemos tentar a possibilidade de uma aproximação entre as descrições e a discussão sobre afetividade. Podemos então pensar o transtorno afetivo bipolar como um quadro marcado pela alternância entre dois afetos predominantes: a melancolia e a mania. Melancolia é um termo antigo e quase sinônimo de depressão. Nesse estado, a afinação com o mundo é marcada pela perda de sentido, de vontade e alguns casos pelo temor. O espaço passa a ser experimentado como um espaço acinzentado, sem cor, lúgubre, retraído e opressor. O tempo passa a ser experienciado como lento, vagaroso. A expressão no corpo é a lentificação e o retraimento. Na dimensão da alteridade a marca é o isolamento social. No campo do sentido a característica central é justamente sua perda (nada mais faz sentido). Em contraposição, a mania ou euforia representa um extremo oposto. O espaço se torna amplo, pronto a ser explorado. O tempo é um tempo rápido, marcado pela projeção no futuro, como se passado e presente não existissem. O corpo apresenta movimentos rápidos e expansivos. A relação com outros é desejada pela pessoa, porém surge uma dificuldade de autocontrole que se manifesta em interrupções da fala alheia e dificuldades no campo da empatia. O campo do sentido é caracterizado pela imensa amplidão de possibilidades, que se tornam incessantes e resultam em um comportamento errático (o pular de uma tarefa à outra).


O grande contraste entre os dois afetos é o problema central do indivíduo bipolar, que estando em um dos estados pode não se reconhecer no outro. E embora a literatura não costume mencionar problemas de identidade (o que costuma ser reservado ao transtorno de personalidade limítrofe/borderline), pode ocorrer, em casos de bipolaridade, um estranhamento das atividades, decisões e comportamentos executados no outro polo afetivo. Isso ocorre justamente porque a tonalidade afetiva atual modifica completamente a relação de sentido com todo e qualquer fenômeno, incluindo a história pessoal. Desse modo, um mesmo evento pode ser lembrado ora com orgulho, ora com culpa. Lidar com essa inconstância é uma das maiores dificuldades presentes nesse quadro.


Espero ter esclarecido a possibilidade e as contribuições do conceito de tonalidades afetivas em Heidegger em sua relação com o quadro atualmente descrito como transtorno afetivo bipolar. Em caso de dúvidas, enviem seus comentários. Abaixo, as referências utilizadas na produção deste texto.


Referências:

Ash, J., & Gallacher, L. A. (2015). Becoming attuned: Objects, affects, and embodied methodology. In Methodologies of Embodiment (pp. 69-85). Routledge.


Boss, M. (1999). O caso da Dra. Cobling. Natureza humana, 1 (1), 139-173.


Fuchs, T. (2013). Depression, intercorporeality, and interaffectivity. Journal of Consciousness Studies, 20(7-8), 219-238.


Fuchs, T. (2014). Psychopathology of depression and mania: symptoms, phenomena and syndromes. Journal of Psychopathology, 20, 404-413.


Heidegger, M. (1988). Ser e Tempo.


Heidegger, M. (2015). Os conceitos fundamentais da metafísica: Mundo, finitude, solidão.


Pieri, G. A., & Castellana, G. B. (2016). Transtorno de personalidade borderline ou transtorno afetivo bipolar? Contribuições da Psicopatologia Fenomenológica para o diagnóstico diferencial. Revista Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, 5(2), 145-159.


Van den Berg, J. H. (1966). O paciente psiquiátrico.

 
 
 

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