top of page

Está gostando do conteúdo?

Então considere tornar-se um(a) apoiador(a) do nosso projeto! Ele é mantido graças à sua ajuda! 

Assim você contribui para nosso crescimento, e tem acesso a conteúdos e brindes mensais.

Porque juntos somos mais fortes!
 

  • Apoiador Fenô

    10R$
    Todo mês
     
Buscar

Sobre o exercício da Psicologia Social em tempos de ódio e ressentimento

Atualizado: 8 de fev. de 2023


Você também pode assistir o conteúdo dessa postagem através do nosso vídeo no YouTube:



O texto a seguir é uma tentativa de reproduzir, com alguns desdobramentos adicionais, minha resposta na prova escrita da seleção para Professor Substituto do Instituto de Psicologia da UFRJ. O tema sorteado foi "Processos históricos e temas contemporâneos em Psicologia Social". Tentei então retraçar uma história das teorias e práticas em Psicologia Social, correlacionando-as com eventos históricos que considero importantes. Minha resposta foi mais ou menos assim:


Já desde seu início, a Psicologia Social tenta compreender e intervir nos fenômenos sociais. Boa parte das perspectivas psicológicas e sociológicas em Psicologia Social encontra-se descrita no livro de Alvaro e Garrido (2006), que tomo como referência na elaboração do presente texto.


Ignorando a Volkerpsychologie de Wundt, pelo pouco desdobramento que teve no campo da Psicologia Social, e tomando como ponto de partida a elaboração da chamada Psicologia das Massas, com Gabriel Tarde, Gustave Le Bon e Sigmund Freud, posso afirmar que já nesse início a Psicologia Social falhou em compreender e intervir na realidade. As formulações desses três autores encaravam os movimentos de massa e as agitações populares das décadas de 1920 e 1930 como algo irracional, imprevisível e selvagem. A ideia básica era que o indivíduo, ao se inserir em um grupo, passaria a agir de modo instintivo e bestial. A Psicologia individual não se aplicaria à massa, já que ela constituiria um todo absolutamente distinto de um mero agrupamento de indivíduos. O resultado dessas formulações foi a demonização de movimentos legítimos de insatisfação popular, e de ideologias como o ludismo, o sindicalismo, o anarquismo e o comunismo. A falha foi tão grande que nenhum desses autores pôde prever, ou propor táticas para evitar, a cooptação das massas e da insatisfação popular pelo fascismo e pelo nazismo. O resultado todos nós conhecemos, pois estão descritos nos livros de história.


Em resposta aos horrores da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, foram desenvolvidos diversos experimentos e teorias sobre liderança, conformidade social e obediência à autoridade. Essas formulações, feitas por Solomon Asch, Stanley Milgran, Zimbardo, Sheriff e Kurt Lewin ganharam grande notoriedade e foram um marco para a Psicologia Social. Contudo, tiveram alguns usos escusos. O conhecimento sobre conformidade social e obediência à autoridade foi incorporado nas táticas militares. Ainda que de maneira indireta, serviu, por exemplo, para que o exército e o governo Americanos implementassem táticas de desestabilização que derrubaram governos na América Latina e implementaram ditaduras nas décadas de 1960 a 1990. As formulações sobre liderança, de Kurt Lewin, por outro lado, serviram para enfatizar a vantagem de uma liderança democrática (autoritativa) em detrimento das lideranças autoritárias ou laissez-faire (espontaneistas). Mas até hoje não tenho conhecimento de alguém que tenha perguntado: Mas que democracia? A democracia burguesa implementada na maioria dos países, que serve tão somente às oligarquias locais e/ou globais? A democracia representativa? Ou estamos falando de uma democracia direta com verdadeira participação e poder popular, tão incomum em nossos tempos?


A verdade é que essas respostas à Segunda Guerra foram inócuas, e a única Psicologia que realmente combateu o nazismo e o fascismo em suas origens permanece pouco conhecida entre nós: trata-se da Psicologia Soviética elaborada por autores como Vigotski, Lúria, Leontiev e tantas outros. Essa Psicologia, no entanto, ainda permanece desconhecida para a maiorias dos(as) profissionais em Psicologia porque foi escrita do outro lado da cortina de ferro, no contexto da Segunda Guerra e da Guerra Fria. Ela foi a única que de fato combateu o nazismo e o fascismo porque colocou em questão suas origens e fundamentos: ela ousou colocar em questão o próprio sistema produtivo capitalista, que se beneficia do autoritarismo em momentos de crise.


Nas décadas de 1960 a 1990 o que se observa, mediante a momentânea tranquilidade presente nos EUA e na Europa, é o surgimento de uma série de formulações teóricas que possuem um caráter menos questionador, e se caracterizam como abstrações que não trazem grandes possibilidades de intervenção na realidade concreta. Nos EUA ganha força a cognição social de Bandura, e na Europa as representações sociais, nas formulações de Serge Moscovici e Jodelet, adquire notoriedade. Enquanto americanos e europeus podem se dedicar ao estudo de fenômenos mais pontuais, como a representação social das doenças, a relação com as populações ciganas, e outras questões locais e regionais, teóricos da América Latina tinham um problema muito mais concreto para resolver: combater e derrotar as ditaduras implementadas com auxílio dos EUA.


É fazendo frente às ditaduras que surgem a Psicologia Social da Libertação, de Martin-Baró, e a Psicologia Social Comunitária, com contribuições de Silvia Lane, Ana Bock e tantas outras pessoas. Ambas voltavam-se às comunidades e à ação no território para o estabelecimento e fortalecimento de vínculos de apoio mútuo como forma de gestação de uma rede de apoio. A necessidade dessa rede de apoio era vital, e estava relacionada também a um aspecto de conscientização popular. A influência do marxismo, sobretudo na Psicologia Social Comunitária, propiciou ferramentas para que o sistema produtivo pudesse ser questionado em suas bases. Nesse sentido, a revolta e insatisfação populares não eram demonizadas, mas compreendidas em outros termos e canalizadas para uma ação concreta na realidade, com vistas à melhoria da sociedade como um todo.


Indo mais a frente e chegando a nossos dias atuais, parece-me que a Psicologia Social ainda é incapaz de compreender e intervir na realidade que se apresenta a sua frente. Nenhum ferramental teórico parece ser capaz de dar conta de figuras como Steve Bannon, de empresas como a Cambridge Analytica, ou de fenômenos como o Brexit, a eleição de Trump, a eleição de Bolsonaro, o capitólio americano e a tentativa de golpe no Brasil, no dia 8 de janeiro de 2023. A verdade é que algumas empresas e personalidades parecem ter em mãos a mais avançada tecnologia social existente, ainda incompreendida pelos teóricos e acadêmicos da Psicologia Social. Byung Chul-Han, filósofo sul-coreano, aponta para os resultados desse problema em livros como No Enxame e Psicopolítica. O uso de algoritmos avançados nas redes sociais atua para mobilizar afetos individuais com vistas à criação de um massa social disforme e homogênea, a serviço dos interesses e vontades do capital. Desejos íntimos são manipulados e moldados para manutenção do status quo ou radicalização de populações a serviço da extrema direita. Atualmente, essas empresas e figuras já perceberam que a Psicologia Individual é uma forma eficaz de intervir na Psicologia Social. Sendo assim, a dicotomia inicial que marcou o surgimento da própria Psicologia Social, a demarcação entre indíviduo e grupo, tornou-se obsoleta.


Na grande mídia temos visto inúmeros artigos que buscam uma explicação para o que tem ocorrido no mundo em formulações teóricas como a dissonância cognitiva, de Leon Festinger. Sinceramente, tal formulação parece antiquada e incapaz de dar conta da complexidade do que se apresenta a nossa frente. Ela não explica, por exemplo, o delírio coletivo em que se colocam 58 milhões de brasileiros atualmente. Parece-me que Martin-Baró nos apontou um caminho mais profícuo, ao retomar a noção de compreensão em Dilthey, na elaboração de sua Psicologia Social da Libertação. Defendo, então, pensarmos uma Psicologia Social verdadeiramente brasileira e latino-americana através das contribuições da fenomenologia hermenêutica. Tais contribuições devem se iniciar pelo abandono da dicotomia indivíduo-coletivo, singular-universal e sujeito-mundo. Se ela irá se efetivar, e se poderá guiar uma prática capaz de intervir na realidade, só o tempo poderá dizer... Mas o primeiro passo é compreender o problema, e planejar um modo de resolvê-lo. Parece-me, então, que um dos grandes problemas são os próprios fundamentos que sustentam a Psicologia Social. Dessa maneira, precisamos nos voltar novamente aos assim chamados "indivíduos" e tentar compreender os afetos de ressentimento e ódio que mobilizam essas pessoas e as fazem ocupar a porta de quartéis e vandalizar os três poderes.

 
 
 

1 Comment


Você merece, Victor. Parabéns!

Like
bottom of page