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Wonderland: o fim do adeus eterno


Já imaginaram como seria poder conversar e ver, todos os dias, um familiar ou amigo falecido, como se nada tivesse acontecido? Pois é, o filme Wonderland, uma obra de sci-fi coreana, explora exatamente essa possibilidade. A história aborda personagens que utilizam uma tecnologia capaz não apenas de permitir conversas e interações com entes falecidos, mas também de adquirir itens virtuais, como se fossem personagens de jogos. O avanço tecnológico, especialmente no campo da inteligência artificial, tem recebido destaque pelas promessas transformadoras que apresenta. Aqui mesmo, no Fronteiras, já compartilhamos alguns textos sobre o tema. Esse drama sci-fi, no entanto, oferece reflexões profundas sobre as possíveis implicações dessas inovações, que podem ser percebidas em 3 momentos.


Primeiro, não podemos deixar de falar da alta expectativa que temos sobre o alcance de nossa capacidade tecnológica. Nesse ponto, não nos referimos a naves espaciais, carros flutuantes ou robôs realizando tarefas domésticas, como imaginado na antiga animação estadunidense Jetsons (1962-63).

Como discutimos em nosso post: Seria a Tecnologia nosso Último Deus?, o avanço da ciência desempenha um papel fundamental e norteador desde o século XIX. No drama Wonderland (2024), com o apoio da tecnologia e, conjuntamente com recurso financeiro suficiente, é possível tentar ignorar os limites impostos pela finitude ou pela ausência de alguém. Essa perspectiva dialoga profundamente com as reflexões do filósofo Zygmunt Bauman (1992), que observou vivermos em uma era de transcendência, em que buscamos constantemente a ampliação e o apagamento de limites.


Também não podemos deixar de pensar em Heidegger ao refletirmos sobre o fato de que somos seres cientes de nossa finitude e, portanto, buscamos maneiras de lidar com ela de modo que atendam aos nossos desejos. Essa questão nos conduz a um segundo ponto: a possibilidade de enfrentar a própria morte ou, mais precisamente, de assumir controle sobre ela. Nessa perspectiva, vemos que, ao contrário da experiência vivida pela personagem Ivan Ilitch (Tolstói) no século XIX — marcada pela solidão, dor e angústia diante da morte —, em

Wonderland, o moribundo se depara com a possibilidade de um recomeço.


Pois bem, imagine você que está prestes a morrer e recebe a chance de participar do seu próprio velório? É interessante pensar nessa possibilidade de poder falar com as pessoas que chegam para se despedir, fazer piadas, cobrar dívidas, conferir quem realmente foi se despedir de você... E, que tal escolher uma nova profissão e mudar de país? Realizar no pós vida os objetivos e sonhos tão almejados. Ser capaz de modificar sua aparência e conseguir aquela estética que nunca foi possível enquanto você estava vivo ou até mesmo voltar a ter a aparência que há anos você deixou de ter? Uma verdadeira oportunidade de ser e não ser você mesmo? Mas, isso tudo não se daria de forma tão simples, é claro. Para sua nova vida funcionar, a pessoa não pode saber que está morta, ou essa consciência poderia arruinar o programa. Ao menos, em teoria, afinal, ninguém imagina que alguém se perceba morto e fique bem com essa possibilidade.


Por último, temos o ponto de vista dos enlutados, onde o recurso apresentado por Wonderland apresenta situações muito intrigantes. Afinal, a pessoa enlutada tem a chance de manter o relacionamento com o falecido e até mesmo "melhorá-lo". Os enlutados que contratam o serviço podem "mimar" aquele que partiu de uma forma que não seria possível antes da morte. O sentimento de culpa e o desejo de compensar algo, fazendo melhor nessa nova oportunidade oferecida pela tecnologia, podem ser trabalhados. Por exemplo, uma família pobre consegue proporcionar uma pós vida de luxo e realizações àqueles que se foram, gastando muito menos do que pagariam no "mundo real”.

Os enlutados têm a oportunidade de interagir com a melhor versão de seus entes queridos falecidos. Isso porque os viventes podem transmitir suas próprias percepções da personalidade da pessoa, ajustando ou até removendo traços indesejados. Além disso, o serviço permite encerrar o contrato a qualquer momento; apagar ou até mesmo restaurar esses “avatares” dos falecidos, graças à existência de backups dos perfis. Mas então, não estaríamos apenas lidando com uma idealização daqueles que amamos? Algumas personagens enlutadas no filme nos revelam a complexidade dessa relação. São personagens que apresentam dificuldade em aceitar a nova presença do ente falecido, enquanto outras chegam a preferir a versão virtual àquela orgânica. Outras passaram pela experiência de “apagar” os falecidos e depois recuperar os dados, percebendo uma diferença significativa entre a primeira e a segunda versão restaurada.


O luto infantil também pode ser explorado por meio do universo fictício de Wonderland. O desconforto de falar sobre a morte com crianças, que ainda é um tabu, pode ser contornado nesse contexto. Com o auxílio da tecnologia de Wonderland, a morte deixa de ser compreendida como um fim definitivo, permitindo que se viva como se ela não tivesse ocorrido. Para crianças nascidas em um mundo altamente tecnológico, é possível dizer que seus pais estão distantes — viajando ou trabalhando —, mas ainda acessíveis por celular ou computador. Nesse universo fictício, até mesmo os falecidos podem realizar chamadas para os vivos, permitindo às crianças um acesso contínuo a essa relação, como se nunca houvesse ruptura.


Bem, são muitas camadas para darmos conta e certamente algo ficará de fora. Mas, o que fica claro no mundo ofertado por Wonderland, é a nossa desmedida e tentativa de controle sobre o imponderável. Através de nossa intenção de controle, tentamos dar as medidas da nossa e da vida dos outros. Buscamos controlar não apenas enquanto viventes, mas também após a morte.


 
 
 

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